Entre as cinzas de fogueiras que arderam há mais de 10.000 anos, arqueólogos descobriram evidências de um ritual que pode ser o mais antigo e contínuo do mundo. Essas práticas ancestrais, preservadas ao longo dos milênios, foram transmitidas de geração em geração entre os povos indígenas australianos.

Desde o final da última era glacial até os dias de hoje, esses rituais mantiveram-se vivos, evidenciando a rica herança cultural e a profunda conexão espiritual desses povos com suas tradições e terras ancestrais. O estudo foi publicado na Nature Human Behavior.

Povo aborígene GunaiKurnai

As terras ancestrais do povo aborígene GunaiKurnai situam-se nas encostas dos Alpes Australianos, uma região alpina no sudeste da Austrália, repleta de rochas e cavernas de calcário, e se estendem para o sudoeste até a costa vitoriana. Essas cavernas não serviam como abrigo para o povo GunaiKurnai, mas eram utilizadas como retiros isolados pelos praticantes de magia conhecidos como mulla-mullung.

Etnógrafos documentaram essas práticas mágicas no século XIX, porém, na década de 1970, arqueólogos que examinaram as cavernas as negligenciaram, pois suas interpretações predominantemente seculares das cavernas as consideravam apenas como locais para cozinhar e dormir.

Atualmente, uma equipe de arqueólogos, em colaboração com o povo GunaiKurnai, desenterrou e descreveu duas lareiras em miniatura cercadas por rochas calcárias. Cada lareira continha um único pedaço de madeira de Casuarina, sem galhos laterais e envolto em tecido adiposo. A descoberta ressalta a importância espiritual das cavernas para os GunaiKurnai, revelando práticas culturais que haviam sido ignoradas por interpretações anteriores.

Relatos sobre a prática já existiam

Informações etnográficas do século XIX na Austrália constituem relatos detalhados de rituais únicos realizados em cavernas por um respeitado “doutor”, que se isolava do resto da comunidade. Europeus da época descreveram esse papel como o de alguém que “enfeitiçava” ou “curava de enfeitiçar”. Os rituais envolviam objetos que pertenciam às vítimas, que eram presos a um pedaço de madeira e queimados rapidamente com um pouco de gordura humana ou animal.

Hoje, o arqueólogo Bruno David, da Universidade Monash, junto com o ancião GunaiKurnai Russell Mullett e outros pesquisadores, desenterraram provas dessas práticas dentro da Caverna Cloggs. As lareiras descobertas ali foram enterradas logo após seu último uso, envoltas em sedimentos datados entre 10.000 e 12.000 anos, período que marca a transição do final da última era glacial para o início do Holoceno.

Desse modo, as duas lareiras encontradas são, surpreendentemente, quase idênticas, mas a equipe determinou que foram construídas e usadas com uma diferença de aproximadamente 1.000 anos.

Escavações começaram em 2020

As duas lareiras, medindo 15-20 centímetros de diâmetro, contendo depósitos de cinzas e um único pedaço de madeira aparado. Imagem: David et al., Nature Human Behavior, 2024

Em 2020, escavações realizadas com a permissão e o auxílio dos anciãos aborígenes GunaiKurnai revelaram lareiras e utensílios de madeira que, se expostos, teriam se deteriorado há muito tempo.

Esses artefatos, preservados fora da vista por milênios, sugerem que restos abandonados do ritual dificilmente foram vistos e copiados por recém-chegados à caverna. Isso fortalece a ideia de que as tradições do povo GunaiKurnai foram transmitidas oralmente por pelo menos 10.000 anos, mantendo-se intactas ao longo das gerações.

Trabalho respeitoso

Depois de séculos de desapropriação e rejeição colonial, uma nova abordagem está emergindo entre arqueólogos e outros cientistas. Eles estão começando a trabalhar de maneira mais respeitosa e colaborativa com os povos das Primeiras Nações da Austrália.

Ao invés de ignorar ou minimizar o conhecimento tradicional, os pesquisadores estão integrando esse saber ancestral em suas análises científicas. Isso não apenas enriquece as descobertas, mas também fortalece a precisão das interpretações.

Um exemplo dessa colaboração é o uso de análises genéticas que confirmam o que os povos indígenas sempre souberam e afirmaram através de suas tradições orais: que possuem conexões profundas e ininterruptas com suas terras ancestrais. Essas histórias, passadas de geração em geração, estão sendo corroboradas pela ciência moderna, demonstrando uma continuidade cultural e histórica.